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Mostrando postagens de julho, 2014
fingir que está tudo bem: o corpo rasgado e vestido com roupa passada a ferro, rastos de chamas dentro do corpo, gritos desesperados sob as conversas: fingir que está tudo bem: olhas-me e só tu sabes: na rua onde os nossos olhares se encontram é noite: as pessoas não imaginam: são tão ridículas as pessoas, tão desprezíveis: as pessoas falam e não imaginam: nós olhamo-nos: fingir que está tudo bem: o sangue a ferver sob a pele igual aos dias antes de tudo, tempestades de medo nos lábios a sorrir: será que vou morrer?, pergunto dentro de mim: será que vou morrer?, olhas-me e só tu sabes: ferros em brasa, fogo, silêncio e chuva que não se pode dizer: amor e morte: fingir que está tudo bem: ter de sorrir: um oceano que nos queima, um incêndio que nos afoga. José Luís Peixoto
Hoje aviso-te que ficarei para sempre arquejando no teu corpo, na orla infinita da tua mão, no teu ombro, que é uma espada. Na tua língua, que é a minha. Só o teu coração saberá se é promessa ou ameaça, mas ficarei para sempre e basta. E entre os dois – estranhamente - termina o absurdo território do poder. Aproximas-te: água-deserto-mel, e estendo-me mel-deserto-água. Não sei onde começas, onde começo... como a dança do golfinho no oceano. Lourdes Espínola
Frémito do meu corpo a procurar-te, Febre das minhas mãos na tua pele Que cheira a âmbar, a baunilha e a mel, Doído anseio dos meus braços a abraçar-te, Olhos buscando os teus por toda a parte, Sede de beijos, amargor de fel, Estonteante fome, áspera e cruel, Que nada existe que a mitigue e a farte! E vejo-te tão longe! Sinto tua alma Junto da minha, uma lagoa calma, A dizer-me, a cantar que não me amas... E o meu coração que tu não sentes, Vai boiando ao acaso das correntes, Esquife negro sobre um mar de chamas... Florbela Espanca, in "A Mensageira das Violetas"
Ganhámos juntos o que perdemos separados: a luz incomparável, esta luz quase louca da primavera, esta gaivota caída dos ombros da luz, e a leve, saborosa tristeza do entardecer, como uma carta por abrir, uma palavra por dizer… Ganhámos juntos o que vamos perdendo separados: a alegria – inocente cidade, coração aberto pela manhã, pequeno barco subindo nitidamente o rio, fumegando, fumando com o seu ar importante de homenzinho… E a ternura – beijo sobrevoando o teu rosto fiel, fogo intensamente verde sobre a terra, intensamente verde nos teus olhos, pequeno «nariz ordinário» que entre os meus dedos protesta e se debate. Alexandre O'Neill
Deve haver um lugar onde um braço E outro braço sejam mais que dois braços Um ardor de folhas mordidas pela chuva, A manhã perto nem que seja de rastos. Eugénio de Andrade, in O peso da sombra 

Nunca falámos muito

(acho que nunca falámos nada) e não sinto necessidade de começar agora. O que lhe poderia dizer? -existem séculos e séculos de silêncio entre nós e, debaixo dos séculos de silêncio, ocultas lá no fundo, se calhar esquecidas, se calhar presentes, se calhar apagadas, se calhar vivas e a doerem-me, coisas que prefiro não transformar em palavras, coisas anteriores às palavras (...) António Lobo Antunes
Pergunta-lhe se quer ver o canto onde dorme, mesmo ali ao lado. Ela diz: claro que desejo saber onde sonham os poetas. Sobem por umas escadas que sobem muito depressa. Um quarto com uma cama e uma cadeira em madeira escura, um quarto de banho, uma cozinha pequenina. Cabia tudo dentro da sala mais pequena da Quinta das Flores. E muitos livros espalhados pela casa num completo desarrumo. Em pilhas de várias altura no chão. Algumas correm o risco de se desmoronarem. Livros em estantes em que o espaço entre os livros colocados perpendicularmente e a tábua superior é ocupado por livros deitados uns sobre os outros. Naturalmente a descansarem do enorme esforço que foi escrevê-los. Mil dias para escrever um livro, dez dias para o ler. Pedro Paixão in Rosa Vermelha em Quarto Escuro